Quadras ao gosto popular (11) - Fernando Pessoa

Nuvem alta, nuvem alta, 
Porque é que tão alta vais?
Se tens o amor que me falta,
Desce um pouco, desce mais! 


Teu carinho, que é fingido,
Dá-me o prazer de saber
Que inda não tens esquecido
O que o fingir tem de ser. 


A luva que retiraste
Deixou livre a tua mão.
Foi com ela que tocaste,
Sem tocar, meu coração. 


O avental, que à gaveta
Foste buscar, não terá
Algibeira em que me meta
Para estar contigo já? 


Quando vieste da festa,
Vinhas cansada e contente.
A minha pergunta é esta.
Foi da festa ou foi da gente? 


Rouxinol que não cantaste,
Galo que não cantarás,
Qual de vós me empresta o canto
Para ver o que ela faz? 


Quando chegaste à janela
Todos que estavam na rua
Disseram: olha, é aquela,
Tal é a graça que é tua! 


Nuvem que passas no céu,
Dize a quem não perguntou
Se é bom dizer a quem deu:
"O que deste, não to dou." 


"Vou trabalhando a peneira
E pensando assim assim.
Eu não nasci para freira.
Gosto que gostem de mim." 


Roseiral que não dás rosas
Senão quando as rosas vêm,
Há muitas que são formosas
Sem que o amor lhes vá bem. 


Ribeirinho, ribeirinho,
Que vais a correr ao léu
Tu vais a correr sozinho,
Ribeirinho, como eu. 


"Vesti-me toda de novo
E calcei sapato baixo
Para passar entre o povo
E procurar quem não acho." 


Tua boca me diz sim,
Teus olhos me dizem não.
Ai, se gostasses de mim
E sem saber a razão. 


Quero lá saber por onde
Andaste todo este dia!
Nunca faz-bem quem se esconde
Mas onde foste, Maria? 


O vaso do manjerico
Caiu da janela abaixo.
Vai buscá-lo, que aqui fico
A ver se sem ti te acho. 


O cravo que tu me deste
Era de papel rosado.
Mas mais bonito era inda
O amor que Me foi negado, 


Trazes os sapatos, pretos
Cinzentos de tanto pó.
Feliz é quem tiver netos
De quem tu sejas avó! 


Vem de lá do monte verde
A trova que não entendo.
É um som bom que se perde
Enquanto se vai vivendo. 


Moreninha, moreninha,
Com olhos pretos a rir.
Sei que nunca serás minha,
Mas quero ver-te sorrir. 


Puseste a chaleira ao lume
Com um jeito de desdém.
Suma-te o diabo que sume
Primeiro quem te quer bem! 


Lá vem o homem da capa
Que ninguém sabe quem é...
Se o lenço os olhos te tapa
Veio os teus olhos por fé. 


Loura dos olhos dormentes,
Que são azuis e amarelos,
Se as minhas mãos fossem pentes,
Penteavam-te os cabelos. 


O sino dobra a finados.
Faz tanta pena a dobrar!
Não é pelos teus pecados
Que estão vivos a saltar. 


Traze-me um copo com água
E a maneira de o trazer.
Quero ter a minha mágoa
Sem mostrar que a estou a ter. 


Olha o teu leque esquecido!
Olha o teu cabelo solto!
Maria, toma sentido!
Maria, senão não volto! 


Já duas vezes te disse
Que nunca mais te diria
O que te torno a dizer
E fica para outro dia. 


Lavadeira a bater roupa
Na pedra que está na água,
Achas minha mágoa pouca?
É muito tudo o que é mágoa. 


O teu lenço foi mal posto
Pela pressa que to pôs.
Mais mal posto é o meu desgosto
Do que não há entre nós. 


Olhos de veludo falso
E que fitam a entender,
Vós sois o meu cadafalso
A que subo com prazer. 


Duas vezes eu tentei
Dizer-te que te queria,
E duas vezes te achei
Só a que falava e ria. 


Meu coração é uma barca
Que não sabe navegar.
Guardo o linha na arca
Com um ar de o acarinhar. 

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