Da carteira de um doido
Numa cova bem funda, em sítio agreste
E solitário, junto
Das severas raízes de um cipreste,
Meu coração deitei como um defunto.
Lá o deixei. Estróina impenitente
Que hoje a prisão de um túmulo encarcera,
Lá jaz, enfim acomodado e ausente,
Apodrecendo em paz à minha espera.
E descansei, por algum tempo ao menos,
Desse incômodo, péssimo aliado,
Bêbado sempre e nunca saciado
Do acre sabor de todos os venenos.
Por longos anos de fragilidade
Aturei-lhe a estroinice de devasso:
Bebedeiras de amor a cada passo,
De quando em quando orgias de bondade...
Sentia como própria a mais pequena
Desgraça alheia; e assim, de quando em quando,
Metia-se em funduras, esbanjando
Uma fortuna em lágrimas de pena.
E quanto a amores, era um vagabundo,
Era um romeiro eterno, escandaloso,
Que ia de porta em porta pelo mundo
Cantando loas e pedindo pouso.
Um mendigo, afinal! Com que despejo,
Com que lamúrias, com que voz aflita
Ia, tentando a esmola de algum beijo,
De boca em boca de mulher bonita.
Como alguns tem o vinho turbulento
Às vezes, outras vezes choraminga,
Tinha ele o amor, digamos – tinha a pinga –
Conforme o rumo com que vinha o vento.
Amando sempre, o amor desabafava
Em ais de mágoa, em gritos de esperança,
Ora arrulhando como pomba mansa,
Ora rugindo como fera brava.
Quantas compridas noites eu, caído
De sono e de canseira no meu leito,
Não o aturei a martelar-me o peito,
Na agitação de um mar enfurecido...
E quanta vez não desejei ser surdo
Quando esse louco, em surtos de eloqüência
Me fazia a estafante confidência
De algum sonho de amor, suave e absurdo!
Como era fácil e exigia apenas
Das mulheres que achava encantadoras
Uma alvura de mármore nas loiras,
Um rosado de jambo nas morenas,
Nunca lhe escasseou terreno azado
E nunca lhe faltou tempo propício
À cultura intensiva do seu vício
- Do seu vício de amar sem ser amado.
Porque amado não foi... E o mais terrível
Dos seus defeitos, como dos meus males
Era esse de transpor montes e vales
Correndo atrás de um bem inacessível...
Como no largo mar uma canoa
Abandonada às fúrias da procela,
Roto o leme, sem rumo, solta a vela,
Vai de onda em onda velejando à toa;
Ele, de desengano em desengano
Como de vaga em vaga sacudido,
Sempre burlado e nunca esmorecido,
Amava à toa, e amava a todo o pano...
Era um doido, afinal. E assim seguia
Pela vida, ora alegre, ora tristonho,
Cada noite sonhando um lindo sonho,
Chorando um sonho morto cada dia...
E eu, as horas da minha mocidade,
A segui-lo esbanjei uma por uma,
Ele era doido. Eu o seguia... Em suma
Éramos dois malucos de verdade.
Mas um dia a aventura foi mais louca:
Bateu por ti... A acompanhar-lhe os passos,
Sonhei teu corpo arfando nos meus braços
E teu beijo florindo em minha boca.
Ai, assim seduzido e deslumbrado,
Eu deixei-me levar, alma perdida;
Nunca senti tamanho amor na vida...
Olha que nunca fui tão desgraçado!
Como te amei! Mas pude felizmente
Abrir a tempo os olhos rasos d´água
Sobre esse abismo de insondável mágoa
Que a meus pés se rasgava, em minha frente.
Meu adoidado guia então detendo,
Disse-lhe: “Coração, meu pobre amigo,
“Basta! Corres em vão e em vão te sigo:
“É para a morte que tu vais correndo.
“Sim desta vez corremos para a morte:
“Por essa a quem te dás e me repele
“Não batas mais, ou morreremos...” e ele,
Ele, a chorar, pôs-se a bater mais forte.
Era demais, e recusei segui-lo:
Tentei contê-lo; resistiu-me, o louco.
Lutamos. Subjuguei-o: Pouco a pouco
Cedeu; prostrei-o. Ei-lo, afinal, tranqüilo.
Destroço inútil que se atira a um canto,
Deixei, sem dó, rolar esse vencido
Para a sombra de um vale ermo e esquecido
Longe do mundo em que sofremos tanto.
Enterrei-o nesse ermo, bem no fundo
De uma bem funda cova... Nem pudera
Jaula mais própria achar para essa fera,
Melhor prisão para esse vagabundo.
E agora que o deixei posto de lado,
Longe de mim, fora do meu caminho,
Penso, ao sentir-me bem indo sozinho,
Que antes só do que mal acompanhado.
Sozinho, avanço pela vida afora
Cantando e rindo, lépido e seguro;
Olho em frente – e por todo o meu futuro
Vejo raiar como um clarão de aurora...
Sinto-me livre e forte. Adeus, cuidados!
Adeus, canseira inútil de desejo!
Desabafem no alívio de um bocejo
Meus beijos murchos, que não foram dados.
Fatigado, apetece-me o descanso:
Com o mesmo olhar de indiferença, quero
Olhar-vos, terra de que nada espero,
E céu, longínquo céu que não alcanço!
Num sossego viril, de que me ufano,
Quero, sem ambição que me atormente,
Ver de cima, da margem da corrente,
Rolar embaixo o torvelinho humano.
Deusa que hoje aos meus olhos te humanizas!
Eu, que te amei humilde e miserando,
Eu calco aos pés o mesmo chão que pisas,
O mesmo chão que já beijei chorando.
Eu, que fui sempre desdenhado e triste,
Vingo-me agora rindo-me do mundo;
E, ó tu, que amei! os teus encantos fundo
No meu desdém por tudo quanto existe!
Ele, o meu pobre coração, lá dorme
No fundo do seu cárcere tremendo;
Lá dorme, o eterno sonhador, enchendo
De sonhos vãos a sua noite enorme.
E do seio da terra, que o consome
Tão lentamente, ouço de quando em quando
Subir a voz de alguém que está chamando,
De alguém que chora a murmurar teu nome...
Vicente de Carvalho
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