A Criança
A criança que pensa em
fadas e acredita nas fadas
Age como um deus
doente, mas como um deus.
Porque embora afirme
que existe o que não existe
Sabe como é que as
cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir
existe e não se explica,
Sabe que não há razão
nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar
em um ponto
Só não sabe que o
pensamento não é um ponto qualquer.
Ah! Querem
uma Luz
Ah! querem uma luz
melhor que a do Sol!
Querem prados mais
verdes do que estes!
Querem flores mais
belas do que estas que vejo!
A mim este Sol, estes
prados, estas flores contentam-me.
Mas, se acaso me
descontentam,
O que quero é um sol
mais sol que o Sol,
O que quero é prados
mais prados que estes prados,
O que quero é flores
mais estas flores que estas flores —
Tudo
mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!
Assim Como
Assim como falham as
palavras quando querem exprimir qualquer
pensamento,
Assim falham os
pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade,
Mas, como a realidade
pensada não é a dita mas a pensada.
Assim a mesma dita
realidade existe, não o ser pensada.
Assim tudo o que
existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie
de sono que temos, infância da doença.
Uma
velhice que nos acompanha desde a infância da doença.
A Neve
A neve pôs uma toalha
calada sobre tudo.
Não se sente senão o
que se passa dentro de casa.
Embrulho-me num
cobertor e não penso sequer em pensar.
Sinto um gozo de
animal e vagamente penso,
E
adormeço sem menos utilidade que todas as ações do mundo.
A Noite
Desce
A noite desce, o calor
soçobra um pouco,
Estou lúcido como se
nunca tivesse pensado
E tivesse raiz,
ligação direta com a terra
Não esta espécie de
ligação de sentido secundário observado à noite.
À noite quando me
separo das cousas,
E m'aproximo das
estrelas ou constelações distantes —
Erro: porque o
distante não é o próximo,
E
aproximá-lo é enganar-me.
Entre o que
Vejo
Entre o que vejo de um
campo e o que vejo de outro campo
Passa um momento uma
figura de homem.
Os seus passos vão com
"ele" na mesma realidade,
Mas eu reparo para ele
e para eles, e são duas cousas:
O "homem"
vai andando com as suas idéias, falso e estrangeiro,
E os passos vão com o
sistema antigo que faz pernas andar.
Olho-o de longe sem
opinião nenhuma.
Que perfeito que é
nele o que ele é — o seu corpo,
A sua verdadeira
realidade que não tem desejos nem esperanças,
Mas músculos e a
maneira certa e impessoal de os usar.
É Noite
É noite. A noite é
muito escura. Numa casa a uma grande distância
Brilha a luz duma
janela.
Vejo-a, e sinto-me
humano dos pés à cabeça.
É curioso que toda a
vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,
Atrai-me só por essa
luz vista de longe.
Sem dúvida que a vida
dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.
Mas agora só me
importa a luz da janela dele.
Apesar de a luz estar
ali por ele a ter acendido,
A luz é a realidade
imediata para mim.
Eu nunca passo para
além da realidade imediata.
Para além da realidade
imediata não há nada.
Se eu, de onde estou,
só veio aquela luz,
Em relação à distância
onde estou há só aquela luz.
O homem e a família
dele são reais do lado de lá da janela.
Eu estou do lado de
cá, a uma grande distância.
A luz apagou-se.
Que
me importa que o homem continue a existir?
Estas
Verdades
Estas verdades não são
perfeitas porque são ditas.
E antes de ditas
pensadas.
Mas no fundo o que
está certo é elas negarem-se a si próprias.
Na negação oposta de
afirmarem qualquer cousa.
A única afirmação é
ser.
E
ser o oposto é o que não queria de mim.
É Talvez o
Último Dia da Minha Vida
É talvez o último dia
da minha vida.
Saudei o sol,
levantando a mão direita,
Mas não o saudei,
dizendo-lhe adeus,
Fiz
sinal de gostar de o ver antes: mais nada.
Falas de
Civilização
Falas de civilização,
e de não dever ser,
Ou de não dever ser
assim.
Dizes que todos
sofrem, ou a maioria de todos,
Com as cousas humanas
postas desta maneira.
Dizes que se fossem
diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem
como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria
eu ouvir?
Ouvindo-te nada
ficaria sabendo.
Se as cousas fossem
diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as cousas fossem
como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos
que levam a vida
A
querer inventar a máquina de fazer felicidade!
Hoje de
Manhã
Hoje de manhã saí
muito cedo,
Por ter acordado ainda
mais cedo
E não ter nada que
quisesse fazer...
Não sabia por caminho
tomar
Mas o vento soprava
forte, varria para um lado,
E segui o caminho para
onde o vento me soprava nas costas.
Assim tem sido sempre
a minha vida, e
assim quero que possa
ser sempre —
Vou onde o vento me
leva e não me
Sinto
pensar.
Não Basta
Não basta abrir a
janela
Para ver os campos e o
rio.
Não é bastante não ser
cego
Para ver as árvores e
as flores.
É preciso também não
ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há
árvores: há idéias apenas.
Há só cada um de nós,
como uma cave.
Há só uma janela
fechada, e todo o mundo lá fora;
E um sonho do que se
poderia ver se a janela se abrisse,
Que
nunca é o que se vê quando se abre a janela.
Navio que
Partes
Navio que partes para
longe,
Por que é que, ao
contrário dos outros,
Não fico, depois de
desapareceres, com saudades de ti?
Porque quando te não
vejo, deixaste de existir.
E se se tem saudades
do que não existe,
Sinto-a em relação a
cousa nenhuma;
Não
é do navio, é de nós, que sentimos saudade.
Nunca Sei
Nunca sei como é que
se pode achar um poente triste.
Só se é por um poente
não ter uma madrugada.
Mas se ele é um
poente, como é que ele havia de ser uma madrugada?
O Espelho
O espelho reflecte
certo; não erra porque não pensa.
Pensar é
essencialmente errar.
Errar
é essencialmente estar cego e surdo.
Ontem o
Pregador
Ontem o pregador de
verdades dele
Falou outra vez
comigo.
Falou do sofrimento
das classes que trabalham
(Não do das pessoas
que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de
uns terem dinheiro,
E de outros terem
fome, que não sei se é fome de comer.
Ou se é só fome da
sobremesa alheia.
Falou
de tudo quanto pudesse faze-lo zangar-se.
O Único
Mistério do Universo
O único mistério do
Universo é o mais e não o menos.
Percebemos demais as
cousas — eis o erro, a dúvida.
O que existe
transcende para mim o que julgo que existe.
A
Realidade é apenas real e não pensada.
O Universo
O universo não é uma
idéia minha.
A minha idéia do
Universo é que é uma idéia minha.
A noite não anoitece
pelos meus olhos,
A minha idéia da noite
é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de
haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece
concretamente
E
o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.
Pouco a
Pouco
Pouco a pouco o campo
se alarga e se doura.
A manhã extravia-se
pelos irregulares da planície.
Sou alheio ao
espetáculo que vejo: vejo-o,
É exterior a mim.
Nenhum sentimento me liga a ele.
E
é esse sentimento que me liga à manhã que aparece.
Pouco me
Importa
Pouco me importa.
Pouco me importa o
que?
Não
sei: pouco me importa.
Quando
Tornar a Vir a Primavera
Quando tornar a vir a
Primavera
Talvez já não me
encontre no mundo.
Gostava agora de poder
julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que
ela choraria,
Vendo que perdera o
seu único amigo.
Mas a Primavera nem
sequer é uma cousa:
É uma maneira de
dizer.
Nem mesmo as flores
tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas
folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada
torna, nada se repete, porque tudo é real.
Quando Vier
a Primavera
Quando vier a
Primavera,
Se eu já estiver
morto,
As flores florirão da
mesma maneira
E as árvores não serão
menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não
precisa de mim.
Sinto uma alegria
enorme
Ao pensar que a minha
morte não tem importância nenhuma
Se soubesse que amanhã
morria
E a Primavera era
depois de amanhã,
Morreria contente,
porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo,
quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja
real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim
seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer
agora, morro contente,
Porque tudo é real e
tudo está certo.
Podem rezar latim
sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem
dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências
para quando já não puder ter preferências.
O
que for, quando for, é que será o que é.
Quando a
Erva Crescer
Quando a erva crescer
em cima da minha sepultura,
Seja este o sinal para
me esquecerem de todo.
A Natureza nunca se
recorda, e por isso é bela.
E se tiverem a
necessidade doentia de "interpretar" a erva verde
sobre a minha
sepultura,
Digam
que eu continuo a verdecer e a ser natural.
Se Eu Morrer
Novo
Se eu morrer novo,
Sem poder publicar
livro nenhum,
Sem ver a cara que têm
os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se
quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu,
assim está certo.
Mesmo que os meus
versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua
beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser
belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem
estar debaixo da terra
Mas as flores
florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por
força. Nada o pode impedir.
Se eu morrer muito
novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma
criança que brincava.
Fui gentio como o sol
e a água,
De uma religião
universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não
pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar
nada,
Nem achei que houvesse
mais explicação
Que a palavra
explicação não ter sentido nenhum.
Não desejei senão
estar ao sol ou à chuva —
Ao sol quando havia
sol
E à chuva quando
estava chovendo (E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e
vento,
E não ir mais longe.
Uma vez amei, julguei
que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela
única grande razão —
Porque não tinha que
ser.
Consolei-me voltando
ao sol e à chuva,
E sentando-me outra
vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não
são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não
são.
Sentir
é estar distraído.
Se Depois de
Eu Morrer
Se depois de eu
morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais
simples
Tem só duas datas — a
da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra
cousa todos os dias são meus.
Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem
sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo
que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi
para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as
cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os
olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto corri
o pensamento seria achá-las todas iguais.
Um dia deu-me o sono
como a qualquer criança.
Fechei os olhos e
dormi.
Além
disso, fui o único poeta da Natureza.
Se o Homem
Fosse
Se o homem fosse, como
deveria ser,
Não um animal doente,
mas o mais perfeito dos animais.
Animal directo e não
indirecto,
Devia ser outra a sua
forma de encontrar tini sentido às cousas,
Outra e verdadeira.
Devia haver adquirido
um sentido do "conjunto";
Um sentido como ver e
ouvir do "total" elas cousas
E não, como temos, um
pensamento do "conjunto";
E não, como temos, uma
idéia, do "total" das cousas.
E assim — veríamos —
não teríamos noção do "conjunto" ou do "total",
Porque o sentido do
"total" ou do "conjunto" não vem de um total ou de um
conjunto
Mas da verdadeira
Natureza talvez nem todo nem partes.
Também Sei
Fazer Conjeturas
Também sei fazer
conjeturas.
Há em cada cousa
aquilo que ela é que a anima.
Na planta está por
fora e é urna ninfa pequena.
No animal é um ser
interior longínquo.
No homem é a alma que
vive com ele e é já ele.
Nos deuses tem o mesmo
tamanho
E o mesmo espaço que o
corpo
E
é a mesma cousa que o corpo.
Todas as
Opiniões
Todas as opiniões que
há sobre a Natureza
Nunca fizeram crescer
uma erva ou nascer uma flor.
Toda a sabedoria a
respeito das cousas
Nunca foi cousa em que
pudesse pegar como nas cousas;
Se a ciência quer ser
verdadeira,
Que ciência mais
verdadeira que a das cousas sem ciência?
Fecho os olhos e a
terra dura sobre que me deito
Tem uma realidade tão
real que até as minhas costas a sentem.
Não
preciso de raciocínio onde tenho espáduas.
Um Dia de
Chuva
Um dia de chuva é tão
belo como um dia de sol.
Ambos
existem; cada um como é.
Última
Estrela
Última estrela a
desaparecer antes do dia,
Pouso no teu trêmulo
azular branco os meus olhos calmos,
E vejo-te
independentemente de mim;
Alegre pelo critério
(?) que tenho em Poder ver-te
Sem "estado de
alma" nenhum, sonho ver-te.
A tua beleza para mim
está em existires
A
tua grandeza está em existires inteiramente fora de mim.
Fernando Pessoa poemas
Fernando Pessoa poesias
Fernando Pessoa poesia
Fernando Pessoa poema
Fernando Pessoa Heterônimo
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