Uma noite no cairo - Augusto dos Anjos

UMA NOITE NO CAIRO 

Noite no Egito. O céu claro e produndo 
Fulgura. A rua é triste. A Lua cheia 
Está sinistra, e sobre a paz do mundo 
A alma dos Faraós anda e vagueia. 

Os mastins negros vão ladrando à lua... 
O Cairo é de uma formosura arcaica. 
No ângulo mais recôndito da rua 
Passa cantando uma mulher hebraica. 

O Egito é sempre assim quando anoitece! 
Às vezes, das pirâmides o quedo 
E atro perfil, exposto ao luar, parece 
Uma sombria interjeição de medo! 

Como um contraste àqueles mesereres, 
Num quiosque em festa alegre turba grita, 
E dentro dançam homens e mulheres 
Numa aglomeração cosmopolita. 

Tonto do vinho, um saltimbanco da Ásia, 
Convulso e roto, no apogeu da fúria, 
Executando evoluções de razzia 
Solta um brado epilético de injúria! 

Em derredor duma ampla mesa preta 
-- Última nota do conúbio infando -- 
Vêem-se dez jogadores de roleta 
Fumando, discutindo, conversando. 

Resplandece a celeste superfície. 
Dorme soturna a natureza sábia... 
Embaixo, na mais próxima planície, 
Pasta um cavalo esplêndido da Arábia. 

Vaga no espaço um silfo solitário. 
Troam kinnors! Depois tudo é tranqüilo... 
Apenas como um velho stradivário, 
Soluça toda a noite a água do Nilo!

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Poema ao acaso